por frei Mateus Domingues*

Entendida como um ordenamento de doutrinas e práticas que visa atingir ou intensificar as relações entre uma coletividade de indivíduos e uma dimensão divina da realidade, semanticamente,“religião” é um conceito relativamente novo. “Diálogo” adquiriu o estatuto que possui hoje, na história das ideias, como resultado da discussão filosófica perpetrada também recentemente. Ademais, no século XIII, grosso modo, os cristãos partilhavam a crença de que a única maneira de ser salvo por Cristo é mediante a adesão sincera e ortodoxa à fé cristã e a consequente adesão à Igreja. O debate teológico nas últimas décadas oferece uma compreensão incomparavelmente mais sutil sobre a questão da salvação do que outrora. Não obstante, em Domingos, homem de seu tempo, há indicativos que podem ser fundadores de uma abordagem hodierna do diálogo entre cristãos e não-cristãos. Como?
Domingos foi um buscador da verdade. Muitos irmãos dominicanos, na história da Ordem, em nome da defesa da verdade, se tornaram promotores da intolerância e do medo. Com efeito, a atitude de Domingos não era exatamente – ao menos não em primeiro lugar – a de um defensor, guardião ou conservador da verdade, mas primordialmente a de um “seguidor da verdade”. “Segue-se a verdade na caridade” (Ef 4,15); a verdade é algo para se praticar (cf. Jo 3,21). Para os primeiros dominicanos, imitar Domingos no seguimento da verdade foi um ato de ousadia: logo após a morte de Domingos, havia conventos em Constantinopla, Túnis e Bagdá; na virada entre os séculos XIII e XIV, havia irmãos pregadores da China à Mauritânia; antes, os irmãos dominicanos estabelecaram escolas de árabe em Túnis (1245) e de hebraico em Múrcia (1265). Contrariando as fobias de então, alguns irmãos, como Alberto, Tomás e Raimundo Martí, tiveram a audácia de, para compreender Aristóteles e as ciências, dedicar suas vidas ao estudo das obras de filósofos “pagãos”, assim como, principalmente, ao estudo de todas as obras de filósofos muçulmanos e judeus que lhes eram então íveis, sem se esquecer das obras de certos filósofos cristãos classificados como “hereges” ou “cismáticos”; a partir disso, Alberto, Tomás e Raimundo Martí, entre tantos outros, puderam produzir conhecimento e formar, com os autores de suas fontes, uma comunidade de pensamento – o conhecimento não tem filiação religiosa. Tomás e Raimundo Martí, por sua vez, demonstraram e insistiram que a disputa com não-cristãos se funda naquilo que cristãos e não-cristãos compartilham: a razão. Mesmo se hoje é inevitável constatar que “disputa” não é a melhor atitude, o fundamento do método de Tomás e de Raimundo Martí permanece intacto; com estes dois irmãos e com outros entre os primeiros teólogos dominicanos, aprende-se que a fundação do diálogo está no que se partilha com os interlocutores – a “razão” – e, ao ser fiel a esse princípio dominicano-tomista, pode-se empregar outras configurações compartilhadas, as quais são redutíveis a isto: antes de ser seguidores de religiões distintas, todos são seres humanos. Em outras palavras, da abordagem dominicano-tomista preserva-se a confiança na razão humana – e, por extensão, em tudo o que é concomitante à condição de “ser racional” e de “ser humano” –, lugar privilegiado de encontro entre as religiões, permitindo aos desejosos de buscar a verdade explicitar suas respectivas posições e doutrinas de maneira razoável.
No diálogo com seguidores de outras religiões, é praticamente inevitável constatar uma pluralidade de posicionamentos e doutrinas sobre a existência e a realidade e que se reivindicam como “a verdade” ou, no mínimo, como verdadeiros; certos posicionamentos, quando enunciados, são incompatíveis uns com os outros. O diálogo não é a busca de um grande acordo de compromisso ou de nivelamento entre doutrinas divergentes. Não se trata tampouco de procurar destruir os posicionamentos e as doutrinas que são incompatíveis com as doutrinas e posições cristãs. Na verdade, o diálogo convida a uma mudança de perspectiva, na qual os posicionamentos enunciados possam vir a se tornar mais inteligentes, sofisticados, reflexivos, moderados, lúcidos, modestos. Não se trata de uma renúncia às posições iniciais, mas de uma revisão crítica das mesmas; isso implica uma abertura a uma reinterpretação das diversas tradições à luz da revisão realizada, o que permite a apreensão de uma graduação progressiva no caminho à verdade.
A contribuição dominicana no vislumbrar de uma graduação progressiva e crítica em direção à verdade consiste no convite para se sair do nível da representação por imagens, as quais são formadas mentalmente sobre uma determinada coisa; a busca dominicana da verdade sublinha a busca por apreender intelectualmente a coisa enquanto tal, por assim dizer. Um diálogo inter-religioso dominicano procura ter por base algo que seja empiricamente verificável nas fontes de determinada tradição religiosa e que seja, por isso, justo com a tradição em questão, seguindo uma argumentação sadia e honesta. Há, portanto, uma primazia do fato, o qual, na abordagem dominicana, certifica toda enunciação e toda prática. É necessário, pois, muito estudo, pesquisa, rigor e humildade. Franqueza e paciência são igualmente necessárias para se operar um desarme das desconfianças e mal-entendidos mútuos. Bem que o catáter objetivo da verdade tenha que ser, na abordagem dominicana, o fundamento do diálogo, a epifania da verdade aparece como uma construção. No diálogo, a ocorrência de tal construção é relacional, pois a verdade se manifesta nos encontros com pessoas únicas e concretas. A aparição da verdade coincide com o aparecimento de amizades singulares, assim como implica uma ação comum. Por isso, o seguimento da verdade é uma busca paciente e permanente. Sobre isso, Domingos legou mais dois ensinamentos. O primeiro é que o cristão deve procurar agir sempre de acordo com aquilo que os próprios cristãos professam ser o modo de ação divino, isto é, de acordo com a misericórdia. O campo de presença imensurável da misericórdia capacita e impele os pregadores a serem irmãos entre si e irmãos de todos – inclusive dos não-cristãos. O segundo ensinamento é a contemplação: aprende-se com Domingos a apreender em tudo e em todos – e não somente entre os cristãos – a epifania da Palavra eterna de Deus; há uma inspiração, novamente, na perspectiva divina que se assume, de alguma maneira, como sendo a de todo pregador e que pode se tornar a de todo ser humano. O exemplo de Domingos evidencia que o diálogo supõe uma mística da palavra e uma ética da palavra; o diálogo é uma obra de pregação – para os outros e, primeiramente, para si.
* irmão (frade) da Ordem dos Pregadores, ministro ordenado (presbítero), pesquisador em história da filosofia e da teologia islâmica e membro do Institut Dominicain d’Études Orientales (IDEO) do Cairo.