por frei André Tavares, OP*
Lembro-me que há alguns anos, o Mestre da Ordem, frei Bruno Cadoré, ao falar da vida de estudos, convidava a pensá-los como uma realidade que “irriga toda nossa vida de dominicanos”. A imagem é realmente bonita. Eu comecei, então, a me perguntar por que ele havia utilizado o verbo “irrigar”. Quando falamos “irrigar”, vem à nossa cabeça ou uma plantação ou um jardim. Então me lembrei que frei Bruno nasceu numa região da França chamada Borgonha, famosa pelas suas vinhas e por seus jardins.
Os especialistas discutem há séculos se o melhor vinho é feito na Borgonha ou na região de Bordeaux. Bem, trata-se de uma questão muito complicada… Por isso, para tentar compreender este “irrigar” que frei Bruno utilizou, prefiro tomar o exemplo de um jardim. Se você pesquisar no Google “jardins da Borgonha”, não vai encontrar muitos espaços espetaculares como os jardins dos palácios de Versalhes ou de Luxemburgo. Mas, você encontrará imagens de pequenas vielas bem cuidadas, com arranjos de flores nas calçadas, junto às janelas, aos pés das imagens de Nossa Senhora… Os jardins naquela região não são espetaculares, mas algo que faz parte da paisagem comum, em toda parte. Do mesmo modo, os estudos na nossa família não são algo espetacular, para poucos, mas uma realidade normal na nossa vida de dominicanos. Quando o silêncio, a reflexão e o aprofundamento am a fazer parte, habitualmente, de nosso cotidiano, podemos dizer que estamos vivenciando esta dimensão importante da missão que nossa família recebeu da Igreja. A vida de estudos, mais que um acúmulo de informações é uma postura de vida, uma espiritualidade. Quando eu era frade-estudante, um grande teólogo dominicano, frei Claude Geffré, fez uma pequena palestra para os frades do convento onde eu morava. Ele disse algo que nunca vou me esquecer: para nós dominicanos, dedicar-se aos estudos está no mesmo plano de vivenciar a obediência, a pobreza e a castidade. Eu disse para mim mesmo: “Uau!”
Bem, estudar não é uma coisa simples, mesmo quando nos são oferecidas condições para tal. Também não é sempre prazerosa. E então nos perguntamos: o que nos leva a ar horas de silêncio, na companhia de livros, no quarto ou na biblioteca, mesmo num belo dia de verão? O que nos leva a dizer não a ir ao cinema com os amigos, quando temos que preparar os exames? O que nos leva a não assistir um clássico futebolístico numa quarta-feira, sabendo que temos que dar aulas na quinta, bem cedo? Todas essas renúncias só terão sentido se temos claro o fim: a pregação. A Igreja confia que sejamos nós aqueles que servem seus irmãos pela doutrina, pela reflexão, pelo aprofundamento, e sem improviso.
Boa parte dos dominicanos, como você sabe, usa óculos… Eu não sou exceção. Há algum tempo, liguei para o consultório de meu oftalmologista. Precisava fazer minha visita bienal. A secretária muito gentilmente me disse que naquela semana não seria possível, pois o doutor estava nos Estados Unidos para um congresso. Penso que pela primeira vez na vida eu tenha ficado feliz por não ter conseguido uma consulta rapidamente. Eu fiquei contente porque meu médico estava se aprofundando para que pessoas como eu, seus pacientes, pudessem se beneficiar do avanço da oftalmologia. E para isso, ele deixou de trabalhar (e ganhar) alguns dias. E como ele é pai de família, é possível que tenha sido duro deixar de ver seus três filhos e sua esposa por uma semana. Pode ser que ele tenha perdido a apresentação de teatro de sua filha mais nova, ou que tenha sentido não poder ir jogar bola com seu filho mais velho. A família dele deve também ter percebido que faltava alguém no banco da igreja, na missa de domingo… Eu agradeci a Deus pela generosidade do meu médico. Assim como eu me sinto mais seguro sabendo que meu oftalmologista estuda e se atualiza, eu ficaria bem desconfiado de me aconselhar com um dominicano que há algum tempo não vai à livraria…
* Convento “Saint-Jacques”, Paris