por Xavier Plassat, OP*
No relógio da história mundial, a proibição da escravatura é fato de última hora. No Brasil, último a abolir esse crime, a abolição tem apenas 130 anos e, olhe aí, a escravidão nunca cessou.
Pode se dizer que a prática da escravidão acompanhou a história da humanidade desde seus primórdios. É comprovada em documentos dos antigos impérios da Babilônia e papiros do Egito. Havia estatuto legal do escravo desde 1790 antes de JC. Por milhares de anos, permaneceu quase inquestionada a existência de uma não-humanidade ao lado da real. Nas suas cartas, o apóstolo Paulo tratou do assunto com naturalidade, conclamando que “aqueles que se encontram sob o jugo da escravidão tratem seus patrões com todo o respeito, para que o nome de Deus não seja blasfemado. Os que têm patrões que acreditam, não os desrespeitem, porque são irmãos.” (1Tm 6,2). O escravo seria mesmo um homem? Esta era a questão. O próprio Aristóteles o rebaixava à condição subumana e sugeriu que a relação mestre/escravo era mutuamente benéfica, à imagem da relação alma/corpo… Na Grécia – “mãe” das democracias – alguns eram chamados a ser cidadãos e outros a laborar para prover às necessidades dos primeiros. Alguns autores consideravam a escravidão física como um mal menor frente ao risco da escravidão moral ou espiritual (a do vício). Não falta hoje quem expresse quase o mesmo: frente ao mal do desemprego ou ao perigo da delinquência, qualquer trabalho não é melhor do que nada? Ao longo desta penosa história, não faltaram até justificações teológicas ou éticas: ao fim e ao cabo, a escravidão não decorre do pecado?
Não é de estranhar que os colonizadores da sua majestade mui católica tenham assumido essa ideologia da naturalidade da escravidão, da sua normalidade, pois essa era a teoria geralmente itida nas esferas do poder… e da Igreja. Durante o século do Iluminismo – que viu filósofos se erguerem contra o absolutismo, o obscurantismo, a realeza e a Igreja – registrou-se o recorde absoluto do tráfico negreiro entre a Europa e as colônias (especialmente da França para Santo Domingo, futuro Haiti: mais de milhão de escravos africanos, sendo 270 mil somente na década de 1780… a da Revolução sa). Quem entre os filósofos levantou voz contra esse mortal tráfico?
Vozes contrárias ao sistema da escravidão, essa estrutura fundante da organização social de todos os tempos, sempre foram raras exceções: tratar bem seu escravo era a máxima ressalva, propor-lhe o exercício da virtude como caminho da verdadeira liberdade, a linha de conduta. Aceitar sua sina como mal menor era o mote.
Nas Américas, os primeiros frades dominicanos ali chegados foram denunciantes contundentes da escravidão imposta pelo conquistador espanhol aos povos originários deste chão, e foram também ardentes e espertos idealizadores de políticas diferenciadas, questionando o sistema da conquista e revelando suas raízes mais profundas.
Tentaram mobilizar Deus e o mundo.
Não se pode dizer melhor que frei Antônio de Montesinos oestando seus paroquianos da Ilha da Espanhola, todos donos de escravos: “Estes não são gente? Com que direito os escravizais?”. Movidos por compaixão e por razão, os frades desvelaram uma verdade inconveniente e aram a cobrar mudanças radicais. Ficaram longe do pior pecado para um pregador: ficar calado. Isolado no século XVI, frei Bartolomeu de Las Casas se tornou um destes francos e incansáveis atiradores, incomodado pelo grito lançado pela comunidade dominicana de Montesinos no Advento de 1511.
Há de estranhar, sim, tamanha e tão constante cegueira da parte de quem confessa um Deus – Javé – que revelou seu nome ao se engajar na libertação de um povo cativo, escravizado no Egito. Desde sempre, nosso Deus foi aquele que escuta o grito dos oprimidos e o clamor dos cativos: “O jejum que eu quero é acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes da escravidão, pôr em liberdade os oprimidos e derrubar qualquer jugo, repartir a comida com quem a fome… e não te recusar diante daquele que é tua própria carne.” (Is 58, 6-7). Deste Deus, Jesus se fez a testemunha fiel: “Pois eu tive fome e me destes de comer, eu era estrangeiro e me acolhestes, estava nu e me vestistes, doente e me visitastes, na prisão e viestes a mim. Garanto a vocês: cada vez que o fizestes a um dos menores dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (Mt 25, 35-40).
Nos tempos modernos aqui no Brasil, não por acaso, a questão da escravidão foi arrancada da invisibilidade, no início dos anos 1970, graças às teimosas denúncias da Comissão Pastoral da Terra, provocadas pelo profético grito do bispo Pedro Casaldáliga (Uma Igreja em conflito com o latifúndio e a marginalização social. Carta Pastoral, 1971).
Ouvindo o clamor dos povos massacrados pelo avanço do capital sobre a Amazônia, Pedro permitiu que a Igreja acordasse de tão longa letargia e asse a se engajar no combate ao trabalho escravo contemporâneo, na prevenção, na denúncia, no cuidado e no conforto às vítimas, e na cobrança de ousadas políticas públicas. Com a sua Campanha nacional “De Olho Aberto para Não Virar Escravo”, a T tem contribuído de forma decisiva nesse combate.
Tornou-se clássico observar que, no Brasil, existe um vínculo estreito entre apropriação da terra e aprisionamento do trabalho. A Lei Áurea de 1888, que libertou os escravos, sucedeu por poucos anos à promulgação da Lei de Terras de 1850, que aprisionou as terras: o Brasil escravagista podia sem perigo libertar seus escravos, na certeza de que a exploração do trabalho deles poderia permanecer, de qualquer maneira e por vários séculos, a serviço da minoria que há 500 anos se apoderou das terras, das matas e das águas. Tendo fechado o o à terra para quem não tivesse como adquiri-la, tornava-se supérfluo manter a senzala.
Concebida para garantir o monopólio da propriedade nas mãos da oligarquia, a Lei de Terras discrimina até hoje os sem-nada, originando o que a Corte interamericana de Direitos Humanos chamou há pouco de “discriminação estrutural histórica” (cf Sentença condenatória no caso da Fazenda Brasil Verde). Ela impediu que os escravos, ao serem libertos, pudessem ter o às terras públicas e legaliza-las como suas, pois nem os pobres, nem os negros tinham recursos para comprar essas terras (… que até então a Coroa havia mantido sob concessão de uso em prol dos donos das capitanias). Daí o Brasil se tornou o latifúndio que conhecemos, e o poder se manteve na mão de quem dele tem o domínio.
Escravização e concentração da propriedade andaram e continuam andando juntas, a serviço de um modelo predador de exploração, baseado em monoculturas de exportação, hoje rebatizado agronegócio.
ados 500 anos de sua brutal invasão, esta terra, dádiva do Criador para o desfruto da vida em plenitude e fraterna convivência – terra de trabalho – continua reduzido à terra de negócio e de matança. Ao tornar-se só negócio, o “agro” também virou inferno. Dizem que agro é pop, agro é tec, agro é tudo. Idolâtrico!
O Brasil tem assim uma pesada herança de discriminação, exploração e desigualdade, pois o país foi se construindo com base na constante instrumentalizado do Estado pelas oligarquias de plantão, desde as primeiras capitanias hereditárias. Concentração de riqueza e de terra rima com concentração do poder político. Para muitos proprietários até hoje, contratar o trabalho de alguém é simplesmente conceder-lhe um favor, sem obrigação alguma. No plano cultural, operou-se uma naturalização da relação desigual, naturalização que afeta opressores e oprimidos. “Sempre foi assim e sempre será”. Em uma conjuntura de revanche e desmonte dos parcos direitos conquistados pelos grupos sociais mais vulneráveis, estão ressurgindo, como normais, práticas brutais de extorsão da mais-valia, de aparência arcaica, porém perfeitamente integradas nos vários ramos da economia globalizada. Práticas essas que o Papa Francisco chama de escravidão moderna e nos convida a combater sem trégua. São 40 milhões de vítimas hoje no mundo, segundo a OIT. No Brasil, 53 mil foram libertados desta condição nos últimos 23 anos.
Sim, são gente, homens, mulheres e crianças, esses milhões de pessoas tratadas pior que animais, humilhadas em condições degradantes, exploradas em troca de comida, presas a dívidas impagáveis. Filhos e filhas do mesmo Deus. Idólatras são aqueles que os mantêm em tão horrível exploração.
* Frade dominicano.